ESPECIAL
Fui chicoteado por organizar festa gay em meu país, diz africano que
pede asilo aos EUA
POR WALDIR JUNIOR DE SALVADOR/BA
FONTE: BBC-EUA
A possibilidade de que a homofobia seja uma das causas do ataque que
matou 49 pessoas na boate Pulse, em Orlando, jogou luz sobre a vulnerabilidade
experimentada por lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) nos Estados
Unidos.
Ainda assim, o país é visto como um dos mais avançados em políticas
igualitárias nas Américas.
Segundo a ONG Human Rights Campain, cerca de 4,8 mil integrantes da
comunidade LGBT buscam asilo nos EUA todos os anos para fugir da discriminação
em suas terras natais - a legislação americana ampara pedidos de pessoas
perseguidas por sua sexualidade.
A BBC Brasil entrevistou um jovem do Zimbábue que aguarda, em
Washington, a análise de seu caso - por razões de segurança, ele pediu para não
ter o nome publicado. Leia o depoimento:
"Quando cheguei aos Estados Unidos, era muito difícil me expressar
de maneira mais livre. Era como se no meu país tivessem acionado um botão na
minha cabeça e esse botão continuasse acionado mesmo depois que eu saí de lá.
Se você é gay, é natural que tenha alguns comportamentos difíceis de
esconder. Mas eu aprendi a reprimi-los por uma questão de sobrevivência. Não
podia andar, falar ou sentar de certas maneiras para não ser reconhecido como
gay.
Também não podia usar brincos. Eu tinha os furos, mas, quando os usava,
as pessoas me olhavam de tal forma que resolvi guardá-los. Quando cheguei aos
Estados Unidos, vi caras indo trabalhar com ternos caros e brincos e pensei: 'É
sério? Eles vão trabalhar assim?'
A coisa mais engraçada foi quando fui fazer uma foto 3x4. Pedi um minuto
para tirar os brincos, mas o fotógrafo americano me disse: 'Por que você tem de
tirá-los? Fique com eles, a foto vai ficar legal'. São coisas que nunca pensei
que aconteceriam desde que me aceitei como gay.
Ser gay ou lésbica no Zimbábue é a coisa mais difícil que pode acontecer
com uma pessoa. Se fosse uma questão de escolha, a maioria deixaria de ser. Lá
a Constituição proíbe qualquer pessoa de cometer atos homossexuais. E
culturalmente é um tabu: se você é um homem, espera-se que se case com uma
mulher e forme uma família.
Muitos dizem que homossexualidade é algo importado dos países
ocidentais, que é algo não africano. Mas, se você analisar a história, verá que
ela sempre esteve lá.
Minha mãe sabia sobre minha sexualidade. Ela era cristã e muito
religiosa, mas acabou aceitando. Eu olhava para ela como um escudo para toda a
família; era minha proteção.
Quando ela morreu, percebi que todos os parentes que pareciam me apoiar
estavam na verdade fingindo, por respeito à minha mãe.
No funeral dela, alguns dos meus tios disseram que não queriam me ver
mais. Eu estava de luto, minha mãe tinha acabado de morrer, mas me avisaram ali
mesmo.
Depois disso, não fui mais convidado a reuniões familiares. Falavam que
tinham nojo porque era homossexual. Não sabia o que ocorreria se autoridades
lhes perguntassem o que sabiam de mim. Não ficaria surpreso se me traíssem e
dessem alguma prova das coisas que andava fazendo.
Havia muitos momentos em que minha vida corria perigo. Eu e meu parceiro
não conseguíamos dormir, porque não sabíamos se a polícia viria nos pegar.
Nossa casa foi invadida muitas vezes.
No fim, você se torna uma pessoa muito solitária. Se não estiver com
amigos gays, não está com ninguém.
Não há boates nem bares gays no Zimbábue, e se houvesse ninguém os
frequentaria para não ser visado. Eu me comunicava com meus amigos em pequenos
grupos. Nos encontrávamos em bares e tínhamos de ser muito discretos, porque
mesmo outros clientes poderiam nos agredir se achassem que estávamos tentando
seduzi-los.
Quando estava lá, tentamos organizar duas ou três festas gays que não
acabaram bem. Pessoas foram agredidas e assediadas por policiais. Alguns foram
parar na prisão. Eu mesmo fui preso quatro ou cinco vezes.
Eles te levam para a delegacia e tentam procurar algo que possa te
incriminar, já que não te prenderam em flagrante. Na maioria das vezes, te
seguram por várias horas.
Se você tenta dizer algo que não entendem, batem em você. Apanhei três
vezes com chicotes. Eu me cobria com os braços para me proteger e levava
chicotadas no corpo todo.
Eventualmente me liberavam, mas era uma forma de intimidar, de dizer
"pare de fazer isso, ou voltaremos para pegá-lo".
Pensei que, se continuasse no Zimbábue, algo iria acontecer comigo.
Tinha de sair por minha segurança e pela do meu parceiro, porque ele estava no
armário. Se a família dele descobrisse que era gay, ele seria deserdado.
Também podíamos ser abduzidos. O governo faz muito disso: houve muitas
abduções, e nunca mais vimos aquelas pessoas.
Peguei um avião e vim para os EUA. Ainda estou esperando pela minha
entrevista no processo de asilo - não tenho permissão para trabalhar e tenho
que aguardar para pedir uma autorização. Um amigo tem sido muito generoso comigo
e me ajudado desde o início do processo. Estou morando na casa dele com meu
parceiro.
O ataque em Orlando foi perturbador, porque me lembrou do que eu fugi.
Mesmo assim, acho que estou mais seguro aqui que no Zimbábue. Posso dizer o que
quero sem sentir que virão me atacar a qualquer momento.
Lá, é perigoso que as pessoas façam as coisas às escondidas. Não há a
menor chance de alguém sair apresentando o namorado aos outros. As relações são
mais curtas, porque assim é mais fácil escondê-las. Então há mais
promiscuidade, o que faz as doenças se espalharem.
Nunca experimentei racismo nos EUA, mas sinto que há certa xenofobia e
um conflito entre africanos e afro-americanos. Talvez eles (afro-americanos) nos
olhem como os pobres, sintam que são melhores que nós. E africanos aqui evitam
ir aos lugares frequentados só por afro-americanos: eles preferem ir a lugares
com um público mais misturado, onde sintam que não serão olhados com desprezo.
Eu acho que somos o mesmo povo e não deveria haver razões para que nos
olhássemos de forma diferente.
Se puder ficar aqui, pretendo fazer com que outros saibam o que está
acontecendo no meu país na esperança de que todos os gays no Zimbábue possam
viver uma vida melhor.
Sinto falta de casa - porque é minha casa, é de onde venho. Sinto falta
de estar no meu próprio país e de usufruir meus direitos enquanto cidadão. Sei
que voltarei um dia."




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